sábado, outubro 27, 2007


"Eu só uso o melhor. Os blocos para a cobertura são ligeiramente maiores do que tijolos para a construção, uma caixa de cada qualidade a cada entrega, e eu uso os três tipos: preto, de leite e branco. Tem de ser preparado para ficar no seu estado cristalino, produzindo uma superfície dura e estaladiça com um bom brilho. Alguns confeteiros compram os seus prodtos já preparados, mas eu gosto de os preparar eu mesma. Existe un infinito fascínio em manusear blocos baços de cobertura em bruto, raspá - los à mão - nunca uso misturas eléctricas - para grandes tachos de cerâmica, depois de derreter, mexer, testarcada passo meticuloso com o termómetro do açúcar até que uma dose suficiente de calor tenha sido aplicada para operar a mudança. Existe uma espécie de alquimia na transformação do chocolate em bruto neste ouro de um louco sábio, a magia de um leigo que até a minha mãe poderia apreciar. Ao trabalhar, limpo a mente, respirando fundo. As janelas esão abertas e a corrente de ar seria fria se não fosse o calor do fogão, os tachos de cobre, o vapor que se evola da cobertura a derreter. Os aromas cruzados de chocolate, baunilha, cobre aquecido e canela são intoxicantes, poderosamente sugestivos, os aromas brutos e telúricos das Américas, o perfume quente e resinoso da floresta tropical. Eis como agora viajo, como as aztecas nos seus rituais sagrados: México, Venezuela, Colômbia. A corte de Montezuma. Cortez e Colombo. O Manjar dos Deuses, borbulhando e espumando em taças cerimoniais. O amargo elixir da vida.
Talvez seja isto que Reynaud intui na minha lojinha: um regresso a tempos em que o mundo era um lugar mais vasto e selvagem. Antes de Cristo - antes de Adónis nascer em Belém ou Osíris ser sacrificado na Páscoa - , o grão de cacau já era venerado. Eram - lhe atribuídas qualidades mágicas. A sua infusão era uam bebida em golinhos nos degraus de tempos sacrificiais; os seus êxtases eram poderosos e terríveis. Será isto que ele teme? A corrupção pelo prazer, a subtil transubstanciação da carne numa taça para o vício? Para ele, nada de orgias sos sacerdotes aztecas. E contudo, por entre os vapores de choclate a derreter, algo começa a ganhar forma - uma visão, diria a minha mãe -, um dedo esfumado de percepção apontando...apontando..."


In, Joanne Harris, Chocolate, 17ª edição. Porto, Asa Editores S.A., 2003, pp. 53 - 54.

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