quarta-feira, julho 07, 2010


"A casa da minha irmã é uma pirâmide de vidro, sem o vértice. Uma estrutura de aço sustenta as quatro faces, que se compõem depeças de blindex em forma de trapézio, ora peças fixas, ora portas, ora janelas basculantes. As poucas paredes interiores de alvenaria foram projectadas de modo que quem entrasse no jardim poderia ver o oceano e as ilhas ao fundo, através da casa. Para refrescar os ambientes, porém, mais tarde penduraram por toda parte cortinas brancas, pretas, azuis, vermelhas e amarelas, substituindo o horizonte por enorme painel abstrato. Também originalmente, o pátio circular no bojo da casa abrigava um fícus, cuja copa emergia no alto da pirâmide frustrada. Sucedeu que a casa, quando ficou pronta, começou a abafar o fícus que, em contrapartida, solapava os alucerces com as suas raízes. O aqrquiteto e o paisagista foram convocados, trocaram acusações, e ficou patente que casa e fícus não conviveriam mais.
Eu sempre achei que aquela arquitetura premiada preferia habitar outro espaço. A casa livrou - se do fícus, mas nem assim parece satisfeita com o terreno que lhe cabe, o jardim que a envolve toda, o limo que pega nas sapatas de concreto, a hera que experimenta aderir aos vidros. Nessa disputa o jardineiro tomou as doresda casa, e passa os dias arrancando a hera, polindo o concreto, podando o que vê pela frente. Um dia, tomado de cólera, saiu revirando os canteiros, eliminou as hortênsias, e teria reduzido o jardim a um campo de golfe, se minha irmã não interviesse."

Chico Buarque, Estorvo